CARTAS DO INFERNO – Introdução
Não pretendo explicar como a correspondência que agora exponho chegou às minhas mãos. Há dois erros iguais e opostos no que diz respeito à matéria Demônios: Uma é desacreditar em sua existência. A outra é acreditar e sentir um excessivo e doentio interesse neles. Os mesmos demônios ficam igualmente satisfeitos pelos dois erros e portanto, contemplam um materialista e um mágico com o mesmo prazer. O tipo de roteiro que será usado pode facilmente ser construtivo para qualquer um que tenha aprendido o “pulo do gato”, ou seja, já tenha um mínimo de conhecimento sobre nossos adversários; mas para qualquer um que tenha intenções escusas a respeito do uso deste material já adianto: Não conte comigo !
Os leitores são advertidos a conceituar o Diabo como um mentiroso; nem tudo que o Screwtape [nome do personagem fictício, que será usado nas cartas] diz poderia ser assumido como verdade, mesmo do seu próprio ponto de vista. Não tenho tentado identificar qualquer dos seres humanos das cartas; mas creio ser improvável que as personalidades (ou papéis que representam) digamos, o Pastor Spike ou a mãe do paciente, fossem exatos. Há pensamentos ansiosos tanto no Inferno quanto na Terra.
A pergunta mais cabível é: Se eu admito a existência de diabos. Admito-a, sim. Isto quer dizer o seguinte: Creio na existência de anjos e admito que alguns destes, pelo abuso do livre arbítrio, tornaram-se inimigos de Deus e, por decorrência desse fato, também são nossos inimigos. A tais anjos podemos chamar diabos. Não diferem, quanto à essência, dos bons anjos, mas a natureza deles é depravada. Diabo opõe-se a anjo no sentido em que dizemos que homem mau é o oposto a homem bom. Satanás, o líder ou ditador dos diabos, não é ente oposto a Deus e,sim ao arcanjo Miguel. Assim admito, não como se tal coisa constituísse uma parte essencial de meu credo, mas no sentido de que é uma de minhas opiniões. Minha religião não cairia em ruínas caso fosse demonstrada a falsidade desta opinião. Até que seja demonstrada tal falsidade – é difícil serem arranjadas provas de fatos negativos – prefiro manter minha opinião. Tenho sempre para mim que ela concorre para explicar muitos fatos. Está em consonância com o sentido claro das Escrituras, com a tradição do Cristianismo e com o modo de crer da maioria dos homens, através dos tempos. Alem do mais, esta opinião não colide com coisa alguma que qualquer das ciências tenha demonstrado como verdadeira. Poderia parecer desnecessário (mas não o é) acrescentar que a crença na existência dos anjos, tanto bons como os maus, não significa admitir a forma de sua representação, quer na arte, quer na literatura. Os diabos são retratados com asas de morcego e os anjos bons com asas de pássaro, não porque alguém afirme que a depravação moral haveria de transformar penas em membranas, mas porque a maioria dos homens gosta mais dos pássaros que dos morcegos. As asas (as quais nem todos tem) lhes são atribuídas para sugerir a rapidez de energia intelectual sem impedimento algum. A forma humana lhes é atribuída pelo fato de que o homem é a única criatura racional que conhecemos. As criaturas mais elevadas do que nós na ordem natural, sejam elas incorpóreas ou sejam dotadas de algum tipo de corpo animado, inacessível à nossa experiência, tem de ser representadas simbolicamente – ou não seriam jamais representadas.
Admito que prefiro morcegos do que burocratas. Vivo nesta época de grandes e “brilhantes” administradores. Os maiores males já não acontecem nos perversos “redutos criminosos”. Nem sequer nos hediondos campos de concentração. Nestes campos, apenas temos visão dos resultados de outros males que foram praticados antes, causando estes mesmos campos. A verdade, porem, é que os maiores males e crimes são criados, arquitetados e executados em escritórios bem limpos, atapetados, refrigerados e bem iluminados por homens de colarinho branco, unhas bem cuidadas; estão sempre bem barbeados e jamais precisam elevar seu tom de voz.
Por causa disso, os símbolos que eu uso para falar do Inferno se originam da burocracia de um estado onde a polícia domina ou do ambiente característico de escritórios de certos estabelecimentos comerciais terrivelmente imundos. Acho bem mais concreto e sugestivo. Mais uma vez, creio que o Simbolismo que usei pareceu útil, pois me permitiu, por comparações terrenas fazer uma boa idéia de outra sociedade que só se mantém por causa do medo e da ambição. Superficialmente, as maneiras são normalmente delicadas, pois um tratamento rude para com seu superior seria suicídio; e quando um superior falasse com um subordinado, se o fizesse com rispidez ou rudeza, isto faria com que os mesmos subordinados ficassem prevenidos antes que o chefe estivesse pronto para dar a “facada nas costas”. Com efeito, “cobra come cobra” é o principio de toda a Organização Infernal. Todos desejam o descrédito, a derrota e a ruína de todos os outros. Em resumo, todos se tornam especialistas na propagação de falsidade e traição. As boas maneiras, as expressões de cortesia e os “elogios formais” que trocam entre si pelos “inestimáveis serviços prestados” são apenas uma casca de todas estas coisas. De vez em quando, esta casca racha, e então aparece o caldo fervente de seus ódios de um pelo outro. O simbolismo também me permitiu livrar a mente da fantasia absurda de se admitir que os demônios estão empenhados na busca desinteressada de algo a que damos o nome de Mal (com letra maiúscula,mesmo). Em meu simbolismo, não haveria lugar para espíritos tão desfigurados em seus objetivos. Os maus anjos (à semelhança dos maus homens) tem espírito puramente prático. Eles tem dois motivos para isso. Primeiro: medo da punição. Assim como os países ditatoriais (totalitários, se preferirem) tem suas prisões políticas e campos de concentração, da mesma forma, o Inferno que eu pinto contem Infernos mais profundos, que funcionam como “casas de correção”. O segundo motivo vem de uma certa espécie de fome. Imagino que os demônios podem, no sentido espiritual, devorar-se uns aos outros, e a nós também. Mesmo no contexto de vida humana, vemos a paixão dominar (quase mesmo devorar) uma pessoa à outra. Isto faz com que toda a vida emocional e intelectual do outro sejam a tal ponto apagadas que se reduzam a meros complementos da própria paixão. O indivíduo passa então a odiar como se o agravo fosse sobre si mesmo, devolver ofensas como se ele tivesse sido ofendido, enfim, tem sua individualidade totalmente dissolvida, assimilando desta forma a do objeto de sua paixão. Embora na Terra chamem isto de “amor”, imagino que passe longe do conceito de amor que Deus nos legou (I Co 13). No Inferno, identifico este tipo de sentimento com a fome; e neste Inferno, a fome é mais feroz e a satisfação desta mais viável.
Não havendo corpos, o espírito mais forte pode realmente absorver o mais fraco, deleitando-se assim de modo permanente na individualidade destruída do mais fraco. E por isso (suponho eu) que os diabos desejam conquistar espíritos humanos, bem como os espíritos uns dos outros. Também é por isto que Satanás anseia por todos os membros de seu exército e por todos que nascem de Eva e mesmo (ainda que pretensiosamente) pelos exércitos do Céu. O sonho que ele acalenta é o do dia em que tudo esteja em seu interior, de modo que qualquer um que disser “Eu” só possa dizer através dele. Poderíamos compará-lo à aranha inchada, em contraposição à bondade infinita segundo a qual Deus torna homens em servos, e estes servos em filhos, de modo a serem no final reunidos a Ele, não como “almas absorvidas”, mas como indivíduos aprimorados, desfrutadores de todo o deleite e prazer que a presença de Deus proporciona. Em síntese, Deus se compraz em pedir ao homem sua individualidade, mas tão logo o homem a cede, o maior prazer de Deus é devolvê-la aprimorada. Deus bate à porta, ao passo que o Diabo a arromba. O Espírito Santo enche, os diabos possuem. Assim mesmo, como acontece nos contos dos irmãos Grimm, estas coisas são apenas criações de fantasia e simbolismo. E o motivo pelo qual minha opinião pessoal sobre os diabos, mesmo precisando ser colocada, não tem maior importância para o leitor destas Cartas.
O propósito das Cartas não é fazer especulações em torno da vida diabólica, e sim lançar luzes, partindo de um novo ângulo (no caso, o do Inimigo) sobre a vida dos homens.
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